Atividade, que teve início na segunda-feira, ocorre de forma ininterrupta no Largo Glênio Peres Moisés disse ao povo: — Então continua...
Atividade, que teve início na segunda-feira, ocorre de forma ininterrupta no Largo Glênio Peres |
— Então continuamos a viagem pelo deserto na direção do golfo de Ácaba, conforme o Senhor Deus me havia ordenado. E por muito tempo caminhamos sem rumo pela região montanhosa de Edom. Então, o Senhor me disse: "Já faz muito tempo que vocês andam por aí sem rumo. Agora, vão na direção norte".
A voz de Karine Oliveira, 30 anos, ecoa pelos dois alto-falantes a íntegra do capítulo 2 do Deuteronômio, o quinto livro do Antigo Testamento.
"Assim rodeamos o país de Edom, deixando o caminho que vai de Elate e Eziom-Geber até o mar Morto e seguindo o caminho que vai até o deserto de Moabe. E o Senhor Deus me disse: "Não ataque os moabitas, que são descendentes de Ló, nem entre em luta com eles. Eu dei a eles a cidade de Ar e não darei a você nenhuma parte do país deles".
No texto bíblico, Moisés relembra aos judeus a travessia do deserto rumo à Terra Prometida. Na frente de Karine, uma visão bem diferente daquela do Pentateuco: pedestres a passos acelerados, indiferentes, a cavalaria da Brigada Militar, a famosa rodinha de pessoas em torno do artista que pula no meio de um círculo de facas e representantes de empresas de telefonia celular tentando abordar um que outro apressado trabalhador. Karine, a leitora, não se intimida e prossegue:
"Depois que atravessamos o país de Moabe, Deus nos disse: 'Continuem avançando e atravessem o rio Arnom, pois eu deixarei que vocês derrotem Seom, o rei dos amorreus, que mora na cidade de Hesbom. Lutem contra Seom e tomem a posse de terra dele'."
Um homem para, fecha os olhos e une as palmas das mãos na altura da cintura. Cláudio Almeida, 57 anos, o ouvinte, também tenta se concentrar entre um e outro conhecido que insiste em bater-lhe no ombro.
— Fala, Cláudio? — diz um passante no local.
— Por aí hoje, cara? — questiona outro.
Vendedor ambulante no Centro Histórico de Porto Alegre, Cláudio é popular por ali.
— Quando Deus está querendo falar para ti, ele diz: "Para aí". Foi o que eu senti e parei — diz ele, antes de voltar para ouvir a Palavra de Deus que sai da boca de Karine.
Cada pessoa lê por meia hora
Moradora de Cachoeirinha, ela integra o exército de 300 leitores que se revezam desde as 20h de segunda-feira até as 8h do próximo domingo para ler a Bíblia, do primeiro livro, o Gênesis, até o último, o Apocalipse, de forma ininterrupta. A ação, que ocorre pelo quarto ano consecutivo no Largo Glênio Peres, dentro de um contêiner azul aberto, ao lado do Terminal Parobé, é organizado pelo Grupo UM, Unidade de Líderes de Jesus das Igrejas de Porto Alegre, um movimento de jovens evangélicos, com apoio da Sociedade Bíblica do Brasil para celebrar a semana da Bíblia. Karine lê uma edição de letras graúdas, própria para a maratona em um lugar pouco propício à concentração. São ao todo 1.573 páginas. Cada um lê, em média, meia hora, enquanto os colegas se alternam atendendo aos curiosos que chegam.
— Tem gente que pede apenas para colocar o nome para oração — conta Rebeca Paz, 29 anos, a próxima da fila de leitura.
É o caso da dona de casa Berenice dos Santos de Sousa, 40 anos.
— Vamos, moça — apressava, preocupada que ainda teria que buscar remédio para os olhos.
Além de anotar o nome para a prece, Rebeca a presenteou com uma Bíblia.
— Fiquei feliz — saiu a senhora, sorridente.
A banda da BM toca à frente, um ônibus logo atrás do contêiner buzina bem na curva. Alguém grita ali perto:
— Duas caixas de pêssego por R$ 5.
— Suco natural a R$ 2 — diz outro vendedor.
Depois de 30 minutos de leitura, Karina toma um gole d'água na garrafinha providencial e passa a vez para Rebeca. Não sem antes, uma autocrítica:
— Aqui, é mais complicado de entender o que se está lendo. Os livros históricos têm nomes de reis, cidades, guerras. É mais difícil de assimilar. É preciso prestar atenção no que se está lendo — diz ela.
Casais buscam bênção à união
Rebeca assume a leitura do Deuteronômio já no capítulo 12:
"As coisas dedicadas ao Senhor Deus e as ofertas prometidas devem ser levadas para o lugar que ele escolher, e ali no altar do Senhor devem ser oferecidos os animais que são completamente queimados. E ofereçam também em sacrifício os outros animais; despejem o sangue em cima do altar e comam a carne. (...)"
— O Centro tem uma pressão espiritual muito grande porque há moradores de rua, embriagados que chegam, usuários de drogas.
Quando anoitece, o movimento diminui à frente do microfone e das caixas de som, as bancas da feirinha fecham e os ambulantes somem. É quando as vozes dos jovens ecoam com mais força. Outras histórias passam ali na frente do contêiner azul.
— Pastor, pode dar uma bênção — pediu um casal, unido apenas no civil.
E assim foi feita uma cerimônia religiosa ali, em pleno Centro no meio da madrugada. Houve também casais que se reconciliaram após uma briga apenas ouvindo a leitura. E até um jovem que, desesperado, intimou o grupo:
— Vocês têm cinco minutos para me falar de Jesus porque estou pensando em tirar minha vida.
A conversa durou bem mais do que cinco minutos, mas ele saiu dali com a promessa de seguir na batalha do dia a dia. A organização encaminhou ofício à BM pedindo segurança, e à noite, uma patrulha passa pelo local. Rebeca segue a leitura:
"Sigam as leis do Senhor, nosso Deus, temam a Deus, obedeçam aos seus mandamentos e deem atenção a tudo o que ele diz. Adorem somente a Deus e fiquem ligados com ele."
Quando entrega a leitura, o grupo está na página 270. Pelos cálculos, faltam 1.303.
Publicado originalmente em Gaúcha ZH
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